quinta-feira, 9 de agosto de 2007


Viver no mato tem suas vantagens, mas também tem suas agruras. Zefa que o diga. Apesar de ser uma cabocla brejeira forte e destemida, não nega certas aversões. “Tem cinco inseto que eu num tolero: o tal do sapo, o mucego, a tal da aranha, o lacrau e o tal do rato”. Vemos que todo colosso tem suas fraquezas.
Zefa sofreu muito na sua interação com a fauna selvagem de seu lugar natal. Enquanto Beta desbravava a mata fechada ignorando qualquer ser vivente que encontrasse pela frente, Zefa se resguardava em lugar seguro, com a pequena Tonha no colo. “Mió ficá aqui. Esse mato ta cheio de carrapicho(1)... pra tirá isso dos cabelo de Tonha dá um trabalho...”. Mas Beta sabia que ela tinha medo dos inofensivos seres silvestres que poderia encontrar pela frente, no mato fechado. Pensando nisso, Beta sorria matreira e saia na frente. Talvez encontrasse um Teju Açu(2) ou outro inofensivo bichinho para pregar uma peça na irmã. “rebola essa misera no inferno”, pedia docemente Zefa, enquanto a irmã, abraçada com o animal, corria atrás dela. Era uma diversão só. Enquanto as duas brincavam de pega-pega com o Tejo, Tonha, esquecida embaixo de um pé de manga, experimentava o sabor de algumas formigas.
Beta sempre teve um fascínio peculiar pela fauna selvagem, trazendo pra casa exemplares pitorescos do lugar, mas sem receber a aprovação dos demais membros da família, não podia ficar com eles em casa. “não, Beta. Você num pode criá um tacaca(3) aqui em casa. Solte já ela no mato”, ou “dê fim a esses escorpião que sua irmã piquena pode cumê”. Beta ficava triste, e Zefa aliviada, escondendo os arrepios. Era a única queixa que Zefa tinha da vida bucólica que levava.
1. O Carrapicho é uma semente muito comum nas matas. Cheia de espinhos, prende-se a tudo que passar no seu arbusto.
2. O Tijuaçu ou Tejo Açu, também, conhecido como Teju ou Teiú, é o maior lagarto brasileiro. Vive em buracos na terra e existe em toda América Latina. Fala-se que um tijuaçu é capaz de lutar com uma cobra até matá-la e que quando é mordido pela cobra ele deixa a luta pela metade e, rapidamente, encontra uma erva que corta a peçonha, depois volta para matar a cobra. A erva que ele usa para curar-se do veneno recebe o nome de erva de tijuaçu.
3. Tacaca: espécie de gambá.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007


“Foi escapando de um enxame de marimbondo caboclo”, lembra Zefa, sobre o seu primeiro encontro com Azulão, seu marido. “a gente deu uma barruada. Eu caí longe da pancada. Tu já viu o tamanho do lajedo que é meu marido? A gente tinha quinze pra desesseis ano...”
De uma trombada seguida de uma queda romântica no mato seco, os pombinhos tentam se recompor.
- te mordero?
- num sei... – responde faceira, retirando algumas fezes secas de cabrito dos cabelos.
Ele olha pro chão, e diz meio sem jeito, limpando a poeira da calça jeans.
- tem que tê cuidado. A picada dessa bixiga dói que só a mulinga...
Ela olha sem graça para o rapaz e analisa suas feições e contornos sarados. Seus lábios grossos. Seu olhar desconfiado, como se a qualquer momento fossem ligar a chave da cadeira elétrica.
- hum – ela responde. Sente o suor do nervosismo escorrer dos sovacos, e fica meio ruborizada.
Ele olha pra baixo, apanha o caderno da moça e entrega.
- acho que tá cheio de terra. Toma.
Ela recebe e sorri, ainda sem graça. Um sagüi guincha no meio da mata e Zefa percebe que a noite vem vindo a galope.
- eita que ta é tarde...
- eu te deixo em casa... vô pra lá mermo... moça sozinha essas hora...
- num faz medo não... nem dos vivo nem dos morto – sorriu.

Eles caminham pelo mato, as cotovias cantando pra dormir, Zefa muito apaixonada mas sem assunto, diz pro seu amor:
- eu já vi uma mulher com os pé de bode andando nessa estrada outro dia...
Azulão balançou a cabeça, sem olhar pro lado.
- tem muita coisa de malassombro por aqui... oia... tem uma bosta de bode no teu cabelo...
Diz que daí em diante, nunca mais se largaram. Foi amor à primeira vista.

Zefa e suas irmãs gostavam de passear no mato. Só não gostavam quando Tonha comia Urtiga e ficava engasgando, um misto de choro e falta de ar. “Discuidei dela só um tiquin” – retrucava Beta, quando Zefa olhava sem esperanças pra Irmã.
“Beta, a gente ainda mata essa minina...”. Mas eram tempos felizes, até mesmo quando esqueciam Tonha no mato e três dias depois alguma alma boa dos sítios vizinhos vinham trazê-la de volta. “achei essa minina lá na pastage... achei paricida cum as minina daqui, então trouxe pra vê se é de vocês. Tava danada comendo aveloz...”
E assim a vida ia passando no Sítio Timbunga, tudo felicidade só.
Zefa sempre foi cuidadosa com suas irmãs, como toda irmã mais velha costuma fazer. Era toda conselhos:
“Beta, num lave os peito nessa cacimba que aí ta cheio de prezepe. De noite eu escuto os cururu cantado aí dentro”.
E ainda ajudava quando seus sábios conselhos eram ignorados:
“Ispreme esse caju em cima que a sanguessuga solta”.
Sábia por natureza, Zefa desde cedo mostrou seus dotes como uma boa dona de casa, além de ter dons mediúnicos os quais todos admiravam. Gostava de entreter as coleguinhas com suas visões:
“tem um sprito andando do teu lado” ou “ vi uma mulher com os pés de bode andando ontem aqui nessa estrada”. As meninas ficavam maravilhadas, embora nunca mais quisessem voltar da escola com ela às seis horas da tarde. Ou hora nenhuma.
Mas Zefa não sentia falta, pois tinha suas irmãs para lhe fazer companhia, e podia contar com elas em qualquer situação. Tonha, a caçula, dava muito trabalho: apesar dos seus três anos, era muito esperta e destemida. Vez por outra Zefa tomava-lhe das mãos uma cobra ou outro bicho peçonhento. “eita minina pra gostá de pegá em presepe!”, ralhava Zefa, preocupada. Beta, com a tranqüilidade inerente dos paquidermes, levantava hipóteses: “é que essas cobras coral são tão colorida... a bixinha acha bonitinha”.
Tonha, a caçula, chegou à família quando Beta e Zefa já estavam crescidas. Por isso às vezes elas esqueciam dela. Mas só de vez em quando.
Tá certo que uma vez deixaram a menina numa várzea. Foram com ela, voltaram sem ela. Uma semana depois, Dona Efigênia, mãe das garotas, achou algo estranho, enquanto ia pra missa num domingo de manhã. “Tenho certeza que isquicí de alguma coisa. Será que num vesti as calçola?”. O pai, Seu Murim, num tom quase tibetano respondeu: “faz uns três dia que num vejo a minina piquena... cumé mermo o nome dela?”
Encontraram Tonha dormindo feito um anjo em cima de um formigueiro, tava tão tranqüila que nem sentia as saúvas comendo suas orelhas. Depois disso Zefa decretou: “temo que ter mais cuidado cum essa danada.”
Beta era a filha do meio. Robusta, de costas enganaria um rinoceronte macho sem maiores problemas. O ar sóbrio e austero da garota escondia uma ternura e delicadeza sem precedentes. Mas seus dotes físicos sempre lhe impeliram para esportes mais radicais, como rachar troncos com a testa e domar feras ensandecidas só pra divertir a vizinhança. Era um amor, a não ser quando ficava irritada, o que era raríssimo. Dizem que na idade de doze anos foram necessários oito homens para segurá-la, num momento de descontrole momentâneo. Hoje ela tem 35 e não se sabe ao certo quantos seriam necessários pra fazê-lo.
Zefa, como a filha mais velha, era responsável pela educação e cuidados com as mais novas. Equilibrada, sempre resolvia as coisas com serenidade e bom senso. Nunca se viu Zefa com raiva ou irritada. E nunca ninguém quis ver, pelo menos até hoje.

breve introdução
Conheci Zefa há alguns anos atrás, na minha casa. De repente ela chegou. Nem me lembro de onde ela vinha nem pra onde ela ia. Lembro sim de minha amiga Célia dizer “que muléstia é isso!”. Era Zefa. No começo não sabia seu nome, nem sequer fomos apresentados formalmente. Também Zefa é destas que logo ganham sua confiança e intimidade. Pra que apresentação, então? Depois fiquei sabendo do seu nome: Zefa Mói de Ferro. Cabocla nordestina forte, conversadeira, mística, pele brilhante, olhos curiosos e tranqüilos. Zefa é um amor: doce, inocente e corajosa. A gente conversou tanto e ouvi tanto dela que descobri que minha vida se resume a antes e depois de Zefa. Então porque ser egoísta? Aqui, tudo o que eu sei e que eu não sei de Zefa Mói de Ferro. Quem tiver olhos, que leia.